Questões e respostas

Doxologia final das anáforas

Haverá razão teológica para, na doxologia final das anáforas, se omitir a referência explícita à Segunda Pessoa da SS. Trindade na honra e glória, que toda a assembleia (presidente e fiéis) tributa ao Pai na unidade do Espírito Santo? O esclarecimento, que peço, é evidente que não é para alterar, seja o que for, nos ritos e palavras da celebração eucarística. Mas, para além da antiquíssima tradição da fórmula, não vejo a razão por que a Igreja continua a mantê-la. Se me esclarecerem, desde já os meus sinceros agradecimentos.

 

Caríssimo consulente
Vou tentar responder o melhor que sei às suas dúvidas.

1. Pergunta se «haverá razão teológica para, na doxologia final das anáforas, se omitir a referência explícita à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade na honra e glória, que toda a assembleia (presidente e fiéis) tributa ao Pai na unidade do Espírito Santo».

Respondo-lhe que a Anáfora ou Oração Eucarística é a principal oração presidencial da Missa, mas não a única, pois também são orações presidenciais a oração colecta, a oração sobre as oblatas, e a oração depois da Comunhão. São chamadas presidenciais porque é ao sacerdote (bispo ou presbítero), enquanto presidente da celebração, que pertence dizê-las, “in persona Christi”. A IGMR exprime-se nestes termos a tal respeito: «Entre as partes da Missa que pertencem ao sacerdote, está em primeiro lugar a Oração eucarística, ponto culminante de toda a celebração. Vêm a seguir as orações: a oração colecta, a oração sobre as oblatas e a oração depois da Comunhão. O sacerdote, que preside à assembleia agindo na pessoa de Cristo, dirige estas orações a Deus em nome de todo o povo santo e de todos os presentes. Por isso se chamam “orações presidenciais”» (IGMR 30).

Todas as conclusões longas das orações da Missa no Rito Romano são trinitárias e seguem sempre o mesmo esquema. Se a oração é dirigida ao Pai, a conclusão é esta: «Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco (=com o Pai, invocado no início) na unidade do Espírito Santo». Com a menção de Cristo próxima, diz-se: «Ele (=Cristo), que é Deus com o Pai na unidade do Espírito Santo». E quando a oração é dirigida a Cristo: «Vós (=Cristo) que sois Deus com o Pai, na unidade do Espírito Santo».

Ora é precisamente este o esquema utilizado também na conclusão da Oração Eucarística, embora se trate de uma conclusão doxológica: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre». O Pai é aqui mencionado mais explicitamente, porque a evocação inicial ficou longe.

Noutros ritos litúrgicos não romanos, existe mais do que um esquema de conclusão, como pode verificar consultando o verbete “Doxologia”, na Antologia Litúrgica (p. 1675) publicada pelo Secretariado Nacional de Liturgia. Mas nós estamos a falar do Rito Romano.

Pode perguntar-se: por que razão aparece «Cristo», a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, em primeiro lugar, na conclusão da nossa Oração Eucarística? Porque esta Oração tem uma estrutura literária que o exige. Com efeito, ela é dirigida ao Pai (Senhor, Pai santo...), tem no centro a evocação da obra redentora de Cristo (Na hora em que Ele Se entregava para voluntariamente sofrer a morte, tomou o pão... De igual modo no fim da Ceia, tomou o cálice...), prossegue na oferta do pão da vida e do cálice da salvação ao Pai (Celebrando agora, Senhor, o memorial... nós Vos oferecemos...), e termina por estas palavras ou outras semelhantes: «Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Por Ele concedeis ao mundo todos os bens». A conclusão doxológica nada mais faz do que retomar estas últimas palavras da Oração e concluir assim: Por Cristo, com Cristo, em Cristo...

O mesmo acontece em latim: as últimas palavras antes da doxologia são: «et te laudémus et glorificémus per Filium tuum Iesum Christum. E a doxologia continua: «Per ipsum, et cum ipso, et in ipso, est tibi Deo Patri omnipotenti, in unitáte Spíritus Sancti, omnis honor et glória».

Numa leitura ou proclamação pouco atenta, pode ficar-se com a impressão de que a totalidade da honra e da glória são tributadas pelo Filho (Cristo) apenas a Deus Pai todo-poderoso e ao Espírito Santo: «Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória...». Mas a doxologia não dirá mais do que isso? Julgo que se dissesse apenas isso, não seria necessário utilizar três preposições unidas à palavra Cristo: por, com, em. Bastava dizer «Por Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória...». Que razões haverá para se dizer: Por Cristo, com Cristo, em Cristo?

Vou dizer-lhe o que pensa um especialista de liturgia, ao qual consultei sobre o assunto. Respondeu-me assim: «A conclusão final da Oração Eucarística romana, embora siga o esquema das outras orações presidenciais finalizadas por conclusão longa, tem uma configuração mais solene, tomando a forma de doxologia. Mas esta doxologia, embora trinitária, não é uma doxologia à Santíssima Trindade, mas ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo, conforme o teor de toda a Oração Eucarística, toda dirigida ao Pai, por Cristo.... Pode entender-se melhor esta configuração mudando a ordem: “A Vós Deus Pai todo-poderoso, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória...”. É também para solenizar esta conclusão doxológica que se amplia a referência literária a Cristo (Por... com... em Cristo), incisos tomados da cristologia do Novo Testamento, em especial a cristologia paulina (veja-se particularmente Efésios, capítulos 1-2 e Colossenses, capítulos 1-2)».

Assim penso eu também, pelo que faço minha a resposta que me foi enviada.


2. A segunda dúvida da sua parte está relacionada com o sentido da doxologia, pois pergunta: «Em vez da fórmula, que está no missal, não estaria mais dentro da ortodoxia a que apresento a seguir? Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Filho e do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre».

Penso que a fórmula composta por si é inadmissível no Rito Romano, literariamente porque contém uma repetição nunca utilizada nas fórmulas litúrgicas quer ocidentais quer orientais (unidade do Filho e do Espírito Santo), e teologicamente, porque poderia ser entendida no sentido de que Cristo e o Filho não são a mesma Segunda Pessoa da Trindade Santa (Por Cristo..., na unidade do Filho).

A expressão literária e teológica da doxologia final da Oração Eucarística romana, em latim e na correspondente tradução portuguesa, é claramente mais perfeita do que aquela que sugere, pois nela se descobre, sem dificuldade, o génio inconfundível do rito romano: brevidade, clareza sem repetições, ortodoxia e ritmo: Per ipsum, et cum ipso, et in ipso // Por Cristo, com Cristo, em Cristo, // est tibi Deo Patri omnipotenti, // a Vós, Deus Pai todo-poderoso, // in unitate Spíritus Sancti, // na unidade do Espírito Santo, // omnis honor et glória // toda honra e toda a glória, // per ómnia saecula saeculórum. // agora e para sempre.

Tenho pena que, em vez de agora e para sempre, não se diga por todos os (ou pelos) séculos dos séculos. Mas esse é outro assunto.


3. Quanto aos testemunhos dos autores que cita em favor da sua tese (é evidente que se trata de S. Fulgêncio de Ruspas e não de S. Lourenço de Ruspas, como escreve, por engano), apenas lhe quero lembrar que é deste autor a seguinte explicação: «Na conclusão das nossas orações, dizemos: “Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho”... Esta prática universal da Igreja tem a sua explicação naquele mistério, segundo o qual o Mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo homem, sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec, que entrou de uma vez para sempre pelo seu próprio sangue... no próprio Céu, onde está sentado à direita de Deus e intercede por nós. Considerando este ofício sacerdotal de Cristo, o apóstolo afirma: “Por meio d’Ele oferecemos a Deus um sacrifício de louvor, o fruto dos lábios que confessam o seu nome...”. Esta é a razão por que dizemos a Deus Pai: “Por Nosso Senhor Jesus Cristo” (Antologia Litúrgica, n. 4796).

E mais não digo, porque suponho que isto basta.


Um colaborador do SNL