Dicionário elementar de liturgia

José Aldazábal

 

Hispânica (Liturgia)

 

Em contexto social e eclesial hispano-romano, logo de seguida misturado com povos nórdicos, suevos e os visigodos, foi-se formando e desenvolvendo, no Ocidente, no decurso dos séculos VI e VII, a liturgia hispânica – o rito hispânico-
-moçárabe, (também chamado moçárabe, visigótico, isidoriano, toledano, gótico…) – com influências evidentes de outras liturgias, orientais e ocidentais, mas com personalidade própria. Esta liturgia é reflexo da vitalidade da Igreja hispânica. Contou com a colaboração criadora de grandes bispos como os de Sevilha (Leandro, Isidoro), Toledo (Eugénio, Julião, Ildefonso), Saragoça (Bráulio), Palência (Conâncio) e da área tarraconense (Justo de Urgel, Pedro de Lérida). Os abundantes concílios e sínodos (sobretudo os de Toledo e os tarraconenses) recolheram e regularam esta sensibilidade litúrgica própria, de modo particular o IV de Toledo, de 633, presidido por Santo Isidoro.
A época áurea da liturgia hispânica pode-se dizer que vai desde 589 (Concílio III de Toledo, com a conversão de Recaredo e o reino visigótico) até 711 (invasão dos árabes), e abarca toda a península e parte da Gália do sul. Nos séculos de ocupação árabe, este rito, refugiado sobretudo em Toledo e no Norte da Península, continuou florescente também entre os moçárabes (ou muzárabes), os cristãos que viviam em território ocupado pelos árabes, mas defendendo a sua fé e o seu culto próprio. No século XI, houve um rápido processo de absorção por parte do rito romano, sob o papa Gregório VII, favorecido em parte pela acusação de contágio da heresia adopcionista. Em 1085, foi oficialmente suprimida a liturgia hispânica, à excepção de algumas paróquias de Toledo, que a conservaram.
O cardeal Cisneros para evitar a total extinção do rito, encarregou o cónego Ortiz da preparação de uma edição dos seus livros: no ano de 1500, apareceu impresso o *Missale Mixtum, e, dois anos mais tarde, o Breviarium Gothicum. O Missal foi reeditado em 1755, preparado por Lesley, e encontra--se na Patrologia Latina de Migne, vol. 85; o Breviário, no vol. 86. Mais tar¬de, o cardeal Lorenzana, em 1804, cuidou de novas edições, que estiveram em vigor até agora.
No nosso tempo, o cardeal de Toledo, Marcelo Gonzales, por encargo da Conferência Episcopal Espanhola e da Congregação para o Culto Divino, constituiu em 1982 uma comissão para a revisão da liturgia hispano-moçárabe, dirigida tecnicamente pelo professor J. Pinnel, beneditino de Montserrat. O primeiro fruto do longo trabalho foi a edição, em 1991, do Missale Hispano-Mozarabicum, e, imediatamente depois, do Liber Commicus. Proprium de tempore, o leccionário do mesmo Missal.
No rito hispano-moçárabe há duas séries de fontes e, portanto, uma dupla organização da liturgia. A chamada «tradição A» abarca quase todos os manuscritos, e parece originária de Toledo e de outras regiões do Norte da Península. Enquanto que a «tradição B» foi a correspondente a Sevilha, que ao fugir da invasão árabe se refugiou em Toledo. Ao editarem-se, em 1500, os códices, imprimiram-se precisamente os da tradição B.
As peculiaridades principais da missa hispano-moçárabe são:
• entre a celebração da Palavra e da Eucaristia, situa-se um bloco característico, com o ofertório, a intercessão dos dípticos (em forma litânica, que vem a ser também uma solene confissão de unidade eclesial) e o sinal da Paz;
• a Oração Eucarística compõe-se sempre de peças próprias do dia (illatio ou Prefácio, a post sanctus e a post pridie) entrelaçadas com as fixas (diálogo, Santo, narração, doxologia);
• a epiclese encontra-se depois da narração;
• a preparação para a Comunhão inicia-se com a confissão de fé e conclui, imediatamente antes da comunhão, com a bênção ao povo.
O Ofício Divino hispânico é particularmente rico. Havia uma organização «catedralícia» e outra «monástica». A primeira, para o clero e povo, com as suas duas horas principais, matutina e vespertina, e mais ênfase nas antífonas e na eucologia que nos Salmos. A segunda, para os monges, com mais horas além das duas principais, e mais importância para a salmodia. Os livros principais eram o Saltério, o oracional, o Antifonário e o Salmógrafo que, quando se reuniram, formaram o Breviarium Gothicum ou o Liber Horarum.
Para os vários sacramentos, o livro oficial é o *Liber Ordinum, com certas características, como a união entre o Baptismo e a actual Confirmação, a única imersão baptismal em vez da tripla romana, as etapas do processo penitencial público, que desembocam no rito penitencial comunitário de Sexta-Feira Santa, com o impressionante rito da «*indulgência», a riqueza dos gestos simbólicos e textos do matrimónio, etc.
No Ano Litúrgico, é característica a Festa de Santa Maria, em 18 de Dezembro, a importância da Apparitio Domini ou Epifania, e o I Domingo da Quaresma, em que se celebra a despedida do aleluia.
No Concílio Vaticano II, celebrou-se a Eucaristia em rito hispânico, em 15 de Ou¬tubro de 1963. E, em Maio de 1992, no dia da Ascensão, João Paulo II presi¬diu solenemente, na Basílica de S. Pedro de Roma, à Missa segundo o rito revisto.

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