Dicionário elementar de liturgia

José Aldazábal

 

devoções

 

A palavra devoção vem do latim, devoveo, que significa dedicar-se com fervor, consagrar-se, fazer voto, prometer, ter certos sentimentos de veneração a alguém ou a algo.
Nem tudo é liturgia, na vida de fé dos cristãos. Também existem outros modos de oração ou celebração, tanto pessoal como comunitária, que se chamam «devoções» ou «exercícios piedosos» ou «religiosidade popular». Estas expressões não são sinónimas, mas, aqui, tratamo-las conjuntamente.
Fala-se de devoções marianas, como o Rosário e o exercício do mês de Maio, ou em honra dos Santos, como tríduos e novenas ou os domingos de S. José, ou de várias devoções com as quais o povo cristão exprime a sua atitude penitencial ou sublinha as festas e os tempos litúrgicos, como, por exemplo, a via-sacra. Também são exercícios devocionais os «pequenos ofícios», inspirados na Liturgia das Horas, e muitas formas de veneração da Eucaristia (cf. EM 58). «O sentimento religioso do povo cristão desde sempre encontrou a sua expressão em formas variadas de piedade, que rodeiam a vida sacramental da Igreja, tais como a veneração das relíquias, as visitas aos santuários, as peregrinações, as procissões, a Via-sacra, as danças religiosas, o rosário, as medalhas, etc.» (CIC 1674).
As devoções e a religiosidade popular, mais acessíveis pela sua língua e suas formas, fizeram certamente, durante séculos, muito bem ao povo cristão, que foi vivendo com este ritmo o Ano Litúrgico, a veneração à Virgem e aos Santos, e a sua fé na Eucaristia. Desde o princípio, coexistiam pacificamente tanto as formas estritamente litúrgicas – sacramentos, sacramentais, liturgia das horas, ano litúrgico – com outras expressões mais pessoais e populares da fé. No relato da peregrina Egéria, sobre Jerusalém, nos finais do século IV, nota-se uma sábia mistura de ambas as dimensões. No Ocidente, onde a sensibilidade do povo se afastou mais da linguagem litúrgica, pode-se dizer que se tornou mais espontâneo o nascimento das várias formas de religiosidade popular.
Algumas vezes, o que começou como devoção popular integrou-se, mais tarde, na celebração litúrgica: como as antífonas marianas, no final da recitação litúrgica, a renovação das promessas baptismais, na Vigília Pascal, e muitos elementos da Semana Santa, no tempo da reforma carolíngia. A relação entre devoções, religiosidade popular e liturgia nem sempre foi pacífica, às vezes, pela opacidade da liturgia, que impedia a expressão da fé do povo, e outras, pela sensibilidade menos comunitária e litúrgica de alguma época: baste pensar na «devotio moderna» dos séculos XIV e seguintes.
O Concílio, ao convidar a uma renovação preferente das celebrações litúrgicas, não quis que se anulassem as devoções. Exigiu, isso sim, que, de agora em diante, também elas sejam objecto de reflexão e, se for o caso, de reforma: «Os actos de piedade do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as leis e normas da Igreja, são muito recomendados, especialmente quando se realizam por mandato da Sé Apostólica. […]É necessário, porém, que esses mesmos actos de piedade, tendo em conta os tempos litúrgicos, estejam de acordo com a sagrada liturgia, de certo modo dela derivem e para ela en¬ca¬mi¬nhem o povo, visto que a Liturgia por sua natureza é muito superior a eles» (SC 13). A partir deste documento da Liturgia, aplicaram-se também às outras formas de devoção os critérios mais importantes: a centralidade de Cristo e do seu Mistério Pascal, a importância da Palavra de Deus, a participação activa, a eclesialidade.
A Exortação Apostólica de Paulo VI, Marialis cultus, de 1974, é um magnífico exemplo de como se pode exercitar este discernimento e esta renovação das devoções, à luz da reforma litúrgica da Igreja. Também delas se pode dizer, e ainda mais que da liturgia, que «sujeitas ao desgaste do tempo, essas formas em que se expressa a piedade se apresentem necessitadas de renovação, que dê azo a nelas serem substituídos os elementos caducos, a serem valorizados os perenes, e a serem incorporados os dados doutrinais adquiridos pela reflexão teológica e propostos pelo Magistério eclesiástico», procedendo entre todos «a uma diligente revisão dos exercícios de piedade para com a Virgem Santíssima. Desejaríamos, entretanto, que tal revisão se processasse no respeito pela sã tradição e com abertura para receber as legítimas instâncias dos homens do nosso tempo» (n. 24). Todo o documento é a proposta de Paulo VI de princípios e critérios para esta renovação da devoção mariana no povo de Deus: deve ser trinitária, cristocêntrica, pneumatológica, eclesial, bíbli¬ca, litúrgica, ecuménica, antropológica. Em concreto, dedica os nn. 40-55 ao Angelus e ao Rosário.
É um repto pastoral – que se sente na Europa, e de modo particular em muitos países do segundo e terceiro mundo – o saber conjugar a celebração litúrgica e a religiosidade popular ou as devoções, que podem alimentar de modo conjunto e fecundo a fé do povo cristão, embora a celebração litúrgica seja «cume e fonte» e expressão mais eficaz da fé e da vida eclesial. «Para manter e apoiar a religiosidade popular, é necessário um discernimento pastoral. O mesmo se diga, se for caso disso, para purificar e corrigir o sentimento religioso subjacente a essas devoções e para fazer progredir no conhecimento do mistério de Cristo» (CIC 1676). «Procurando esclarecê-las com a luz da fé, a Igreja favorece as formas de religiosidade popular que exprimem um instinto evangélico e uma sabedoria humana, e que enriquecem a vida cristã» (CIC 1679).
Não são aspectos alternativos, mas complementares, que se devem respeitar, e não misturar de modo pouco educativo, para que ambos contribuam para a expressão e para o crescimento da fé do povo de Deus.

--> Procissões. Religiosidade popular.